Ocultação de cadáver
O jornal The New York Times, há pouco tempo publicou uma matéria em que um ilustre sabido, Nicholas Negroponte, chamado de “visionário digital” por Nick Bilton, repórter, afirmava que o livro impresso, tradicional, já teria morrido, ficado obsoleto.
Em fins da década de 1990 e princípio de 2000, entretanto, a Internet ainda era, para a maior parte da população brasileira, uma tímida e distante possibilidade que, mesmo quando acessível, era cara, lenta e instável. Nos dias de hoje, percebe-se não só uma melhora na qualidade e um barateamento nos custos de acesso, como uma infinidade de recursos vem sendo criados a cada dia, possibilitando uma maior interação entre internautas, mesmo àqueles que só navegam neste universo via lan houses, “telecentros” e outros estabelecimentos e programas governamentais de acesso público e controlado.
Sem querer repetir o que outros muitos já disseram, apesar de ainda haver muito o que avançar, não dá para negar que houve sim um princípio de democratização, de inclusão digital no Brasil, e a literatura, que antes circulava entre poucos, via livros tradicionais, fanzines, cartas, postes e nas gargantas dos saraus, hoje também pode ser encontrada, sem grande dificuldade, na web.
Caso semelhante parece estar ocorrendo na relação entre os fanzines (pequenos jornais alternativos e quase sempre artesanais) e os blogs (os badalados “diários eletrônicos”). Naquele mesmo momento em que a Internet era tão rara em nosso país, o mesmo não se pode dizer da quantidade de fanzines que circulavam entre jovens de diversos coletivos Brasil afora. Praticamente todo grupo politicamente organizado, mesmo que informalmente, mantinha um zine mais ou menos periódico. Era uma forma de divulgar idéias e, no caso da literatura, especialmente a mais marginalizada, torná-la pública e acessível, sem a intermediação das editoras.
A pesquisadora Florentina da Silva Sousa, em seu livro Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU (Editora Autêntica, 2005), diz que os grupos minoritários sempre buscaram alternativas para tornar publica a sua arte, à revelia do mercado editorial e da academia, que dita o cânon. Mas, com a Internet, quase tudo parece ter se descomplicado e, posso dizer, pela minha própria experiência, que criar um blog é ainda mais fácil que um fanzine: o Dr. Google ensina.
Os fanzines Boletim do Kaos, do escritor Alessandro Buzo, o Efeito Colateral, de Rodrigo Ciríaco e o Literatura no Brasil, da Associação Cultural Literatura no Brasil são bons exemplos de zines dedicados à literatura marginal e ao cotidiano periférico, que se digitalizaram e, com isto ganharam em visibilidade e em conteúdo.
Como resultado, tal qual antes havia antes uma infinidade de fanzines que incluíam a literatura em seu conteúdo fixo, pulula hoje uma infinidade de blogs, muitos deles, como os antigos zines, completamente dedicados à literatura dita periférica ou marginal.
Os fanzines teriam morrido, como os livros de papel citados por Negroponte? Há que se considerar a resposta, pois até pode ser verdade que o número de edições de fanzines vem diminuindo ano a ano e o número de blogs, inversamente, vem crescendo - até eu, há tempos não produzo um zine, embora atualize constantemente meus blogs -. Mas dizer que eles estão mortos é exagero. Se não for assim, então minha casa, cheia de zines e livros da biblioteca comunitária, virou necrotério e muita gente corre o sério risco de ser presa por “ocultação de cadáver”.
Ilimitado
Enquanto a favela ficou nos belos, mas rasgáveis fanzines, seus versos, suas crônicas e suas mil e uma histórias, pouco incomodaram à legião de leitores inconformados com a nossa prepotência em escrever e tornar pública a nossa literatura – até porque, receber um zine era uma honra para poucos. Hoje, a falta de censura, a ausência do que poderia ser um filtro de “qualidade” no meio virtual, e a possibilidade de que qualquer um acesse os textos disponíveis nos blogs, provoca a ira de muita gente. Todos os blogueiros e blogueiras têm relatos de ofensas, pedras virtuais atiradas com fúria por leitores inconformados com a nova maneira que as ditas “minorias” encontraram de se fazerem vistas.
Ódio entre classes, à parte, a visibilidade proporcionada pelo mundo virtual aos autores periféricos, produz, sem sombra de dúvida um impacto positivo na autoestima de quem, enfim se sente representado com profundidade, sem a carga negativa dos estereótipos comumente atribuídos aos pobres.
Na Internet, ainda não nos puseram limites.
De zineir@s a blogueir@s
Conheci o escritor Alessandro Buzo por volta de 2000, através de uma amiga, a Daniele. Na época, ela e eu acabávamos de participar da fundação da Posse Poder e Revolução - grupo de jovens ligados ao Hip Hop, com o objetivo de intervir política e culturalmente no bairro – e estávamos às voltas com a produção de dois fanzines, o Rajada Cultural, que era um zine coletivo, do Poder e Revolução, e o “Musa-pra-que-te-quero” – um fanzine literário que pretendia reunir para mostrar e valorizar os escritores e, principalmente, as escritoras da periferia.
O processo de confecção destes pequenos jornais artesanais era bem simples: reuníamos textos, digitávamos ou escrevíamos à mão - o que fosse possível -, recortávamos, reagrupávamos e associávamos figuras de jornais, de revistas ou de outros zines, aos textos e, por fim, tirávamos o “xerox”, com dinheiro do próprio bolso. As pequenas tiragens (20 ou 30 exemplares) eram distribuídas apenas aos amigos mais próximos, ou para as pessoas que, sabíamos, se interessariam pelo assunto.
Um dia, a Daniele veio com a notícia de que uma pessoa que morava no Itaim Paulista (outro extremo de São Paulo) havia publicado um livro sobre a situação dos trens naquela região. Para nós, isto soou como uma grande façanha, pois, enquanto nós ainda estávamos juntando poeminhas e centavos para publicar pequenos fanzines, aquele rapaz, tão morador da periferia quanto nós duas, já tinha publicado um livro inteiro!
Imediatamente entramos em contato, por carta, compramos o livro e passamos a trocar fanzines. Buzo passou a nos enviar periodicamente o seu Boletim do Kaos e nós lhe mandávamos o Musa-pra-que-te-quero.
O “Musa” se desfez e eu, mais tarde, passei a produzir meus poezines (fanzines produzidos com meus próprios poemas). O Boletim do Kaos, do Buzo, sobreviveu e tornou-se um pequeno jornal que luta para se manter a cada fim de contrato com os patrocinadores, mas se mantêm como blog complementar ao do próprio Buzo, o Suburbano Convicto.
Confira você mesmo:
Blogs do escritor Alessandro Buzo:
Suburbano Convicto
www.suburbanoconvicto.blogger.com.br
Boletim do Kaos:
http://www.boletimdokaos.blogspot.com/
Literatura Periférica:
literaturaperiferica.blogspot.com
Blog da Associação Cultural Literatura no Brasil (Suzano SP):
literaturanobrasil.blogspot.com
Blog do Poeta Sérgio Vaz
www.colecionadordepedras.blogspot.com
Blog do escritor e professor Rodrigo Ciríaco
efeito-colateral.blogspot.com
Blog do escritor Ferrez
ferrez.blogspot.com
Blog da escritora Cidinha da Silva
cidinhadasilva.blogspot.com
Fontes: BILTON, Nick Para leitores digitais, o futuro é flexível em designer e conteúdo in: Folha de São Paulo, 09/08/2010
SOUSA, Florentina da Silva, Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU, Editora Autêntica, 2005
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