A cor do privilégio
Falando de modo grosseiro, luta de classes é o embate travado entre
empregados e patrões. Os primeiros tentam se libertar da exploração
econômica e os últimos tentam mantê-la, pois dela advém o seu
lucro. Entre ambos temos a classe média tentando equilibrar-se entre
seu pouco dinheiro e seu horror aos pobres.
Nos tempos em que o espectro do comunismo rondava mais de perto o
Brasil muitos dos meus amigos viviam em estado de terror, pois a
propaganda oficial dizia que, nesse horroroso sistema, quem
porventura fosse dono de duas casas teria de doar uma, quem tinha
dois carros, teria que se desfazer de um, e assim por diante. Mas o
medo dos meus amigos sempre me pareceu bastante infundado, já que
todos eles moravam em barracos apertados na beira do córrego.
O medo deles e das outras pessoas era, na verdade, apenas uma
reprodução do discurso das elites nacionais. Discurso esse
estrategicamente plantado para manter o domínio de uma classe sobre
a outra – já que o maior medo das elites sempre foi, justamente, a
emancipação financeira dos pobres. Pobres libertos significa ricos
encarcerados. E como no Brasil, via de regra, ser negro é ser
pobre, a luta de classe se revelará também como luta de raças.
Assim, o racismo seria também uma faceta da luta de classes.
Nesse viés, temos, de um lado, as pessoas socialmente brancas (a
elite de pele clara e cabelos claros ou tingidos à força) colhendo
os frutos de séculos de escravidão e racismo, com maior poder
aquisitivo, mais anos de estudos, maior expectativa de vida, etc; e
de outro temos o povo negro (composto por pretos e pardos),
inversamente, com renda inferior à dos brancos, menos escolaridade,
etc.
Se o maior medo subjetivo da pessoa negra é o retorno aos tempos
malditos da escravidão. O maior medo da pessoa branca é o de um dia
assumir o papel daquele que foi escravizado.
Além disso, pessoas socialmente brancas acreditam, de certa forma,
que perder os privilégios trazidos pelo racismo equivale a ser
aprisionado. Isto é, sabem que a libertação dos negros está
intimamente ligada à sua prisão. Por que não viveriam sem os
privilégios estabelecidos. Não é de graça sua posição
reacionária diante da discussão antirracista e de políticas
afirmativas como as cotas, por exemplo.
A igualdade racial tende , por exemplo, a tirar dos brancos o título
de beleza padrão, diminuir seu acesso ao ensino superior e aos
papéis socialmente valorizados. Busca-se, de todas as formas, manter
as coisas como estão, pois o
despertar massivo da negritude geraria conflitos.
As mesmas pessoas que compreendem
o embate iminente proveniente da tomada de consciência do povo
negro, fingem desconhecer o fato de que já existe um conflito posto
onde negros e negras são sistematicamente vitimados.
Assim, o povo branco tende a
demonstrar desprezo diante das dores causadas pelo racismo, tendem a
se incomodar mais quando encontram um negro em posição de poder do
que quando o vê na lama. Usam o desprezo como arma do racismo...
Se os brancos brasileiros não criaram a KKK tupiniquim, seu
desprezo diante dos problemas do racismo impediu, por exemplo, que o
cinema nacional, a música e a literatura se ocupassem da
problemática do racismo, como acertadamente fizeram os Judeus ao
financiarem os filmes antinazistas e, por isso, criaram um sentimento
universal de repúdio ao nazismo que alimenta a vergonha da Alemanha
diante do fato de ter protagonizado esse momento histórico.
Essas coisas fazem com que nos indignemos mais com os terrores do
nazi-facismo do que com os da escravidão. Assim como nos incomodamos
mais com a ditadura de 64/85 que deixou desamparadas cerca de 1000
famílias, do que com a ditadura atual a “democracia militar”,
que desampara três a cada quatro famílias negras.
Além disso, as pessoas socialmente brancas não sentem uma só gota
de vergonha pelo fato de o Brasil ter sido o último país no mundo a
abolir a escravidão, nem de ter proibido os ex-escravos de comprarem
suas próprias terras ou de terem acreditado durante muito tempo que
no Brasil não havia racismo.
Então, não é que não percebam nada disso. A verdade é que toda
vez que ouvem falar de racismo, é como se um velho fantasma lhes
olhasse através do espelho, reprovando suas atitudes e ameaçando-os
de vingança. Sentem um desconforto e só conseguem pensar em escapar
das acusações, da perda de privilégios ilegítimos e da
desvalorização social. Em suma, morrem de medo da possibilidade de
ocuparem o lugar mais terrível do capitalismo que, no Brasil,
historicamente tem sido empurrado ao povo negro.
Vale lembrar: nem todas as pessoas socialmente brancas são racistas - o que é ótimo -, mas ainda assim, colhem os privilégios advindos de uma sociedade pautada no preconceito baseado na cor da pele.
Vale lembrar: nem todas as pessoas socialmente brancas são racistas - o que é ótimo -, mas ainda assim, colhem os privilégios advindos de uma sociedade pautada no preconceito baseado na cor da pele.
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